sábado, 15 de maio de 2010

                                       O ANTI-CABEÇA




                                                                Arnaldo Bloch ( O Globo, 14/02/04)


Uma tendência ganha fôlego em nossos dias: o antiintelectualismo. Seu porta-voz, o Anti-cabeça, está em tudo que é lugar, pronto pra lutar por sua ideologia.

O Anti-cabeça é recrutado por uma força invisível ( um deus? um fenômeno natural?), que diz: “ Onde quer que estejas, filho, abomina todo refinamento mental, toda sutileza oratória. Destrói aqueles que elaboram o pensamento complexo e abra as portas para a felicidade simplificadora.”

O Anti-cabeça pode ser ignorante ou culto. Mas nunca será inteligente.

O inteligente inculto, por sua vez, livra-se de ser um Anti-cabeça se estiver consciente de seus limites circunstanciais, e dar-se a liberdade de decidir, sem traumas, desenvolver ou não o intelecto. Mas, se for magoado, será um Anti-cabeça furioso.

Culto ou ignorante (mas sempre ininteligente), o Anti-cabeça odeia o raciocínio sofisticado e acredita que, para existir e imperar, precisa exterminá-lo ou isolá-lo. Não pode haver diálogo entre as duas esferas. O mundo é pequeno demais para caber Cabeça.

O intelectual,  na visão do Anti-cabeça, nada tem a contribuir para a construção de uma sociedade melhor. Ele é sempre o Cabeça, pernóstico, mentiroso, delirante, confuso, um chatonildo que opõe-se à simplicidade deste mundo.

O Anti-cabeça vomita diante de uma arte que não seja figurativa ou decorativa. Cospe, mesmo sem ouvir, numa música cuja harmonia (palavra proscrita) seja um tantinho mais intrincada.

Acredita que a vanguarda não existe, que é sempre um embuste, e ignora interdependência/intercâmbio/processo que envolvam clássico e novo.

O Anti-cabeça pronuncia a palavra “intelectual” como se fosse um palavrão. Ou então, como se tal ser ( “o intelectual” ) não existisse na realidade, fosse invariavelmente um picareta, sujeito deletério, um sofisma ambulante, uma praga subversiva.

O Anti-cabeça dorme na platitude e acorda no banal. Acredita que o medíocre será vencedor. À noite, sonha com a uniformização de tudo num grande show que não pode parar para pensar, que transforme as vidas num zumbido permanente e alegre. Nesse show não há lugar para a expressão da tristeza, da melancolia, da angústia como formas válidas: estes são sentimentos para se extirpar do coração antes de chegar à garganta e à voz, que devemos guardar nos nossos peitos, não encher o saco dos bons e simples com roupa suja existencial.

A existência, por sinal, não é uma questão a ser pensada ou exposta, crê o Anti-cabeça. A existência apenas “é”. E ponto – porque se forem reticências a coisa já fica muito complexa. Toda a filosofia está enterrada nesta afirmativa, podemos bailar e rir. É tão fácil ser feliz!!! Só o cabeça com a sua carranca, é que não vê.

O objetivo final do Anti-cabeça é exterminar o Cabeça, que tem um poder de comunicação imediata menor e pode encontrar dificuldades em defender sua dignidade e sua honra.

O Anti-cabeça segrega, procura criar uma nova classe de degenerados, de inúteis, de incompreensíveis masturbadores mentais que nada têm a ver com o senso comum e, portanto, não devem ser levados a sério. O mundo será melhor, mais direto, mais claro, mais divertido e colorido sem eles pra perturbar. Que fiquem encastelados em seus átrios abafados e cheios de teias de aranha.



O cronista, que não é um Anti-cabeça, prescinde de declarar-se, entretanto, um intelectual. Mas saúda os Cabeças e os simples com toda a humildade.



                              Eu, Suzana, acato integralmente, e louvo sua coragem.

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